Não quero me gabar de ter percorrido uma epopéia, afinal não sou nenhum Ulisses vagando sobre ondas por 2 décadas até encontrar sua Ítaca, mas de todo modo chegar a Haia no momento oportuno, aproveitar esta janela de oportunidade que os gregos chamavam de kairós, não foi nada como beber um copo de água com açúcar.
Foi preciso acordar cedo, antes do Sol dar o ar de sua graça, numa friaca-da-porra, pedalar a bike até o metrô, rumar para a estação Biljmer Arena de Amsterdam, subir no trem rumando pra cidade que os holandeses chamam Den Haag, bem agasalhado mas ainda assim tremendo numa temperatura que fez congelar os canais que vemos nos cartões postais. Um rolêzão para que eu pudesse chegar, pela primeira vez na vida, ao venerável Vredespalais (Palácio da Paz).
Ali dentro, a Corte Suprema da ONU iniciava, em 11 de Janeiro de 2024, as audiências relativas à alegação feita pela República da África do Sul contra o Estado sionista de Israel de que a Convenção Para Proteção e Repressão do Crime de Genocídio (ONU, 1948) estava sendo sistematicamente violada pelas tropas israelenses em Gaza.
Eu quase havia cancelado minha aventura por motivos de saúde – minha digestão estava muito zuada, com episódios de diarréia, e me parecia arriscado fazer todo o périplo de deslocamento em um estado físico onde a caganeira poderia a qualquer momento exigir de mim um pulo urgente ao banheiro. Na véspera, indeciso, oscilando entre o ânimo guerreiro do ativista e o desânimo deprimido do misantropo, passei horas nesta encruzilhada de caminhos – ir a Haia ou não, eis a questão! – e por fim uma conversa com meu companheiro de casa, o tunisiano Wael, arrastou-me para uma decisão perigosa.
Pelo meio do papo, em que Wael me dizia que gostaria muito de ir mas precisava trabalhar, pensei alto e partilhei com meu flatmate a ideia de que as pessoas em Gaza estão passando por situações extremamente terríveis, sofrimentos hediondos, e que seria vergonhoso de minha parte não me colocar em situações desconfortáveis e adversas para manifestar solidariedade a elas. Eu que não tenho nenhum gosto pelo martírio nem pelo ascetismo, conversando com Wael sobre o valor que pode ter o sofrimento auto-escolhido (segundo ele, algo que marca o caráter nacional da Tunísia), caí para o lado do ir ao invés do ficar. Seria sofrido, incômodo e exaustivo fazer esta cobertura jornalística, fotográfica, audiovisual, por dois dias, certamente; mas quantos reproches de minha consciência eu não teria que ouvir se tivesse escolhido o conforto da inação!
11 de Janeiro, aproxidamente 2 da tarde: após quase 4 horas nas ruas, exposto às intempéries, eu já havia filmado e fotografado o suficiente; havia acompanhado junto com os demais manifestantes, nos telões ligados na Al Jazeera, toda a robusta apresentação realizada pela equipe jurídica sul-africana; tinha sido forçosamente deslocado por ameaças de repressão da Politie das imediações do Palácio para um Parque na região; tinha ficado sobretudo encantado de admiração por Adila Hassim e sua postura altiva, cheia de auto-confiança, profundamente bem-informada, com que se endereçou à corte dizendo que estávamos diante não apenas de algo que diz respeito ao Oriente Médio, mas sim algo crucialmente relativo à nossa “humanidade compartilhada”.
Com o fim da primeira manhã de audiências no ICJ, eu me preparava para ir embora da manif em direção ao próximo pit stop: uma visita ao Museu Omniversium e seu Dome, com fins de pesquisar ciência e tecnologia para a tese de doutorado em que atualmente trabalho.
Eu tremia demais de frio, e a exaustão era pesada sobretudo nas pernas, para que eu tivesse condições de me decidir a caminhar, por mais de 30 minutos, até minha próxima destinação em Haia: decidi chamar um Uber com o fiapo de 4G que me restava, num celular com a bateria quase exaurida, resignado a ficar 10 euros mais pobre. Assim que entro no carro já percebo de imediato: caí nas garras de um tagarela. E um daqueles que fala aos borbotões não por deleite em expressar sua gentileza com o passageiro, não pelo júbilo de uma sociabilidade em flor, mas por uma irresistível irrupção de irritação e ranzinzice. Eu mal havia batido a porta do carro e dito hello, e ele já me alvejou, num inglês macarrônico, com um forte sotaque que eu supus ser oriundo lá-do-lados-da-Rússia:
– End of protest, heh? It’s gonna be useless!
(– Fim de manifestação, hein? Não vai servir pra nada!)
“Cuméquié, meu chapa…?” – pensei com meus botões, em português, enquanto em minha perplexidade fracassava em mexer os músculos da boca para responder-lhe algo em inglês; por alguns segundos, quedei quieto, como se um punho invisível tivesse me socado a cara, e nada pude retrucar antes de decifrar melhor o sentido do que eu ouvira. O motorista do Uber, com esta hospitalidade tão falha, com esta vibe tão Râmbica e tão I’ll kick your ass!, fez-me ser inundado por uma sensação ruim – a de ser imediatamente agredido por alguém que nunca me viu na vida: useless, useless, a palavra ecoava em meu crânio, eu a sentia como um xingamento, e ao mesmo tempo uma revolta era imediatamente convocada a se erguer. “Quem é esse filho da puta para xingar nossa luta de inútil?” – pensei no secreto do cérebro.
Na verdade, antes daquela primeira frase disparada como uma farpa, a verdade é que o trabalhador uberizado que foi me catar pôde me observar, por uns 10 segundos, enquanto eu saía de dentro de uma pequena massa de manifestantes, muitos deles tremulando bandeiras em solidariedade com um povo sem Estado, atualmente massacrado por uma Catástrofe com C maiúsculo.
Viu-me caminhando em direção a seu carro enquanto ao meu redor tremulavam aos fortes ventos as bandeiras que possuem as mesmas cores que uma melancia – branco, preto, verde, vermelho. Bandeiras que, tremuladas em Gaza ou na Cisjordânia, já fizeram seres humanos perderem membros – decepados, amputados, fraturados pelas tropas sionistas – e mesmo suas vidas – destruídas por snipers ou atropeladas por tanques. Bandeiras que, nesta manhã extraordinária, re-apareciam em impressionantes mutações, em poderosos memes projetados em telão, como aquele que trazia Mandela, morto a tanto tempo, para o nosso meio, entre nossos aliados.
Quando entrei no Uber, eu tinha às minhas costas algumas dúzias de manifestantes que acabavam de escutar a equipe jurídica sul-africana dentro do ICJ e que agora seguiam reunidos, deliberando, discutindo, berrando slogans, cantando canções, enquanto nos telões Mandela era evocado em sua velhice, na sabedoria dos seus cabelos brancos, após décadas de prisão, após ser eleito presidente de seu país, após virar ícone global da luta contra o apartheid, lembrando a todos os passantes, transeuntes ou passageiros ou pilotos de Ubers, de que nossa liberdade restará incompleta sem a liberdade dos palestinos.
Depois de um silêncio desconfortável, o jornalista em mim decidiu interrogar a figura ao invés de brigar com ela:
– What do you mean? Why do you say it’s gonna be useless?
(O que você quis dizer? Por que diz que vai ser inútil?)
O que seguiu foi parecido com o que chamaríamos no Brasil de sociologia-de-boteco, mas que aqui vou chamar de geopolítica-de-Uber. O senhor explicou-me que era originário da Armênia, e citou algumas tretas para mim ininteligíveis com o Azerbaijão, que o fizeram migrar para a Holanda. O epicentro de seu argumento era que ele estava ali, dentro daquele carro, cuidando de seu business, assim como o pessoal em Israel e nos EUA estão cuidando do business deles. O senhor armênio explicou-me ainda que assim como dirigir um carro pros clientes do app Uber é aquilo que ele faz por grana, o negócio dos poderosos na Casa Branca ou nos palácios de Tel Aviv é a guerra – negócios são negócios, fazer o quê?!? Ainda foi-me decretado, por alguém com um grau de convicção e certeza de pétreo dogmatismo, que um punhado de manifestantes como aquele ali na rua não ia fazer diferença nenhuma. Business is business.
“Pisa mesmo…”, pensei de novo com meus botões, forçando a boca a dizer algo que pelo menos tivesse um fiapo da dignidade mínima esperada de um filósofo na esfera pública, ainda que no microcosmo duma carona paga dentro da gig economy.
– So you’re not in favour of stopping this war?
(Então você não é favorável a parar esta guerra?)
Comecei a sentir mais simpatia pelo sujeito quando ele me respondeu que sim, queria o fim da guerra, mas que não acreditava na eficiência daquilo que havia visto eu e os camaradas fazendo. Ele ecoava ali minha própria insegurança e incerta sobre a efetividade de nossas ações: no fundo, no fundo, eu também sentia que, após 3 meses protestando, indo pros protestos, fazendo posts dentro das redes controladas por bilionários do Vale do Silício, não estávamos sendo bem-sucedidos em botar um stop na carnificina. Se o useless dele me ofendeu tanto, foi pois havia nisso algo de verdade. Eu estava sentindo isto por 3 meses: meus textos, inúteis; minhas fotos, inúteis; meus vídeos, inúteis; meu ativismo, inúteis; tudo isto feito, e na semana passada o número de crianças assassinadas era 10.000; hoje já são 11.000; mês que vem, em virtude da fome e das epidemias, da ausência de hospitais e de ajuda humanitária, talvez sejam 15.000… Pra não falar dos adultos…
Expliquei a ele brevemente que eu estava ali fazendo o que eu podia em prol do fim da guerra genocida contra toda a Faixa de Gaza; ofendido em minha auto-imagem ao ser chamado de useless, tentei defender a importância da cobertura dos acontecimentos ao redor da Corte Internacional de Justiça, onde estava começando a ser julgada a acusação contra o Estado de Israel por crimes de genocídio cometidos em Gaza entre Outubro de 2023 e o nosso presente momento, 11 de Janeiro de 2024. Ele reiterou que o que estávamos fazendo era uma inutilidade, e deu a entender, na gíria dele, que éramos um bando de doidos, da pá virada, por ficar reunidos diante de um telão, vendo o live stream da AlJazeera, quando cada um poderia assistir o mesmo conteúdo em casa, aquecidinho, na tela do celular, debaixo das cobertas, tomando milkshake quentinho no canudinho…
Aquele cara tava me deixando puto. Ele não sabia nada sobre mim e parecia completamente sem plena noção da descortesia que me fazia; eu não diria que ele estava sendo malévolo, ou que suas palavras tinham sido propositalmente afiadas, imbuídas de fel e disparadas rumo a meus ouvidos com intenção de machucar. Eu não estava diante de um sádico, intencionando ser cruel com um adversário, mas alguém brutalizado e empedernido pelo cotidiano de trabalho nas condições altamente privatistas e competitivas da gig economy sob domínio dos lordes neofeudais do Vale do Silício.
Para ele, o que fazíamos em praça pública não era solidariedade internacionalista, nem luta coletiva por fazer valer o direito de auto-determinação dos povos – comecei a entender que, no viés dele, éramos um bando de gatos pingados, nem mesmo mil pessoas, que tinham ilusões perniciosas de que tinham algum poder. Éramos uns sonhadores sem pé-no-chão, agitando bandeiras inutilmente, enquanto os juízes estavam lá, a um quilômetro de distância, a portas fechadas, e não estavam olhando pelas janelas nem escutando nada do nosso escarcéu!
A Bíblia dele era o business is business. Ele pontificou naquele tom de “as coisas são assim mesmo, melhor se conformar”. Não há alternativa. Alguém tá ganhando muita grana com estas guerras, ele parecia dizer, e não são vocês aí com protestinho com megafone que vão mudar nada. A sociologia-de-boteco-uberístico, que estava gerando em mim uma vibe muito ruim, por sorte foi logo interrompida por minha chegada a meu destino, o Museu Omniversium.
Desci do carro disposto a dar no máximo 3 estrelas pra aquele cretino – e cheguei a suspeitar de que fosse um pró-sionista saindo do armário em pleno horário de trabalho, abandonando a usual cortesia sempre de bom tom diante do cliente para ventilar sua cumplicidade com o imperialismo supremacista das elites israeleenses. Bati a porta do carro na saíde com mais força do que fizera ao entrar, pisei na calçada perplexo e meio deprimido, mais incerto do que nunca a respeito da questão crucial: se a África do Sul iria de fato ser bem-sucedida em seu intento. E aí vi o Mandela. Vi o gigantismo de um Mandela escultural. Vi um Mandela de pedra, mas retratado em movimento, na andança, no ato de estar-rumando. Um Mandela evocado como presença viva para além da morte de seu organismo físico. Aquilo já encheu-me de novo o ânimo.
Nem mesmo senti saudade do quentinho de dentro do carro – pois a frieza do ser humano uberizado havia feito meu coração esfriar, havia me feito carente de novas doses calor humano depois daquelas gélidas estocada verbais que o motorista me enfiara pelos tímpanos adentro; Mandela me acolhia após este pequeno trauma, após este ínterim distópico em minha manhã de ativista. Ele tinha atrás de si uma impressionante obra de muralismo, um graffitti que era uma festa de cores e de formas, e em seu cume havia uma deslumbrante mulher negra em algo que li como evocação do afrofuturismo, do feminismo negro, do yearning que mestras como bell hooks, Audre Lorde e Angela Davis nos ensinam. E por dentro serelepe fui tratando de me refazer dos rasgos que o verbo rasgado do outro tinha feito.
Pois o fantasma da inutilidade me assombra, vê-lo encarnado, disparado como farpa, é experiência singularmente amarga – mas ainda assim instrutiva. Alguém que eu nunca vi me joga na cara um “a luta de vocês é inútil!”, e um lado de mim recebe isto e não pode evitar o abalo. A porrada das palavras muitas vezes deixa-nos mais grogues do que ficaríamos com um soco. Em minha grogueira emocional pensei comigo mesmo que devo ter ainda uma auto-estima vacilante, um medo de que minha vida se mostre afinal de contas um inutensílio e uma nulidade, apesar de tantos esforços para tentar provar o contrário. Aquele Uber me jogou numa daquelas valas do cotidiano que a gente chama usualmente de choque-de-realidade. Eu havia ido a Haia sonhando-me um herói do midiativismo, um Ninja da cobertura de eventos históricos, e entrei naquele carro sem nem mesmo suspeitar que estaria spreading my dreams under your feet, e que aquele desconhecido no volante iria pisoteá-los sem nenhuma dó.
“I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.”
W.B. Yeats
Poucos minutos atrás, lá estava eu, passando um frio da porra, filmando os manifestantes, tirando fotos dos cartazes, querendo construir o castelo de areia da noção de minha relevância, até mesmo do meu heroísmo. E um bruto do precariado me passa a perna e, em segundos, me deprime. Pisoteia meus sonhos – aquilo que eu, sendo pobre, tenho apenas, tenho só, sonhos de relevância que talvez se mostrem delírios. A aquilo que eu, sendo inábil para atuações, muitas vezes deixo claro e explícito, à mostra, à flor da pele: espalho, mesmo sem querer, meus sonhos ao redor de meus caminhos. Outros vem e os pisoteiam como rinocerontes numa casa de cristais. Lembrei-me de uma das mais belas canções de Jimi, ecoando na memória enquanto os olhos umideciam ao vento: “…and so castles made of sand fall in the sea… eventually!“
Com o que restava de luz do dia no anoitecimento acelerado de Haia, aproveitando os últimos minutos daquela cinzenta e nublana luz daquele dia em que as crianças já pisavam sobre os lagos congelados, tirei uma selfie com o graffiti daquela praça, na frente do Omniversium, onde erigiram a estátua de Mandela. Eu não estava em júbilo, longe disto, mas ao mesmo tempo o choque-de-realidade havia me posto com pés-firmes-no-chão.
Na foto, estou com uma cara bem zoada, com meu rosto de poucos amigos, com aquele grin que já me criticaram e que faz parecer que sou um misantropo que anda pelo mundo com aquela Náusea sartriana entranhada nas vísceras. Mas está nela uma fatia de vida, uma slice of life, em um dia que tornou-se para mim inesquecível. Um dia em que estive exposto às intempéries do clima, da história, das relações. A verdade é que às vezes quase chego a apreciar o brutalismo das relações humanas atuais por um efeito que ele tem de dispersar as nuvens da fantasia consolatriz, de disfazer os castelos dos dreamers utopistas. Minha vidinha embarcada na correnteza do mundo acabou levada para este ponto: tornei-me um especialista em distopias.
Às vezes onde me sinto mais em casa é neste enraizamento no solo das frustrações, entre vidros estilhaçados por pedradas, entre farrapos sonhos de auto-importância destroçados pela adaga da brutalidade alheia. Distopia é onde moro – e nunca esqueci de uma frase que minha amiga Júlia Lee Aguiar disse um dia, num papo n’A Casa de Vidro, numa pérola de síntese sobre a existência: “a vida é um balde de frustrações.” É preciso aprender a engolir este balde de frustrações num espírito trágico, ou seja, afirmativo, ou seja, que abraça a existência com tudo o que ela tem de horrendo e intragável.
Este estado de espírito sombrio e melancólico, apenas parcialmente dispersado pela estátua de Mandela, pelo mural grafitado e pela visita ao Omniversium, dispersou-se ainda mais na manhã seguinte, 12 de Janeiro. A equipe jurídica de Israel defendia-se da acusação de genocídio diante da Corte e, ao contrário do que acontecera na véspera, quando a maioria de nós ouviu as palavras com atenção e respeito, com atitude de reverência e admiração perante os representantes da África do Sul, nesta ocasião a massa de manifestantes explodiu em escarcéu, cobrindo as palavras dos israelenses. Até hoje, mesmo com as 3 horas de transmissão no telão, não posso dizer que eu tenha escutado a defesa israelense – eu estava muito ocupado com o mergulho na massa. Eu estava me curando das feridas causadas pelo Uber na véspera ao estar ali, imerso em solidariedade, andando com os camaradas, sonhando de novo em ser como Arundhati Roy.
Percebi então o quão equivocado havia sido o motorista do Uber pontificando sobre nossa inutilidade. Ele havia pressuposto que éramos uma força nula com o argumento de que “o Palácio estava a um quilômetro de distância”. Mas pensei com meus botões que não fazia muito sentido aquele argumento: cientificamente, as leis da acústica, a materialidade da propagação dos sons, faz com que seja um fato que nós, 500 ou 600 manifestantes, estávamos propagando nossas vozes-em-coro por um largo círculo do território de Haia. Pode até ser que a Corte tenha isolamento acústico muito profissa, que ninguém lá dentro estava ouvindo nosso “ruído”, mas de todo modo é até mesmo concebível que nossa música coletiva de 4 horas mandou vibrações que chaqualharam o Palácio da Paz como um pequeno terremoto.
O motorista do Uber também pressupunha erradamente que nenhum dos juízes daria a mínima para o fato de que havia uma manifestação lá fora, que nenhum deles olharia pelas janelas, que nenhum deles daria uma olhadinha, no feed do seu celular, nos reports midiáticos. Ele estava errado pois estávamos ao vivo na Al Jazeera. Estávamos com centenas de câmeras e filmadoras. Muitos de nós estávamos transmitindo a manif ao vivo pelo Instagram, pelo Facebook, pelo TikTok, afrontando os shadowbannings e as tesouras dos censores corporativos dos United States of Aggression. Muitos de nós estávamos inclusive prontos para ações mais radicais caso a Corte, na promulgação de seu veredito sobre as medidas provisórias solicitas pela África do Sul, fosse desfavorável ao pedido de que o Estado de Israel fosse responsabilizado por sua sistemática violação do direito internacional.
Éramos apenas 500 pessoas, é verdade, mas levamos para Haia o espírito dos 500.000 cidadãos que marcharam em Londres e em Washington, das centenas de milhares que também estão enchendo as ruas de Casablanca a Amman, de Beirut a Sanaat, de Cairo a Ramallah. Nunca saberemos qual teria sido o veredito da Corte, trazido a público em 26 de Janeiro de 2024, caso o Palácio da Paz tivesse estado absolutamente vazio de cidadãos em protesto em 11 e 12 de Janeiro; sabemos, no entanto, que a significativa vitória história da África do Sul, e que significa também um passo à frente para o Sul Global e para a libertação palestina diante de décadas de opressão e apartheid, ocorreu contando conosco que estávamos ali, arrodeando o Palácio, sem medo de fazer ressoar pelos ares: “from the river to the sea, Palestine will be free!”.
Os juízes não são semi-deuses num Olimpo inatingível; são humanos de carne-e-osso, com tímpanos como os nossos, e pode crer que nós nos fizemos ouvir. Acho até mesmo – deliro? – que botamos medo na Corte e eles sentiram que, em seu julgamento das medidas provisórias, fossem favoráveis a Israel e não à África do Sul, poderiam incitar um riot inédito fora do Palácio da Paz. Como saber?… De todo modo, ao contrário da farpa disparada pelo trabalhador uberizado, concluí – deliro? – que não foi uma jornada de lutas inútil.
Inútil mesmo é xingar os outros de inúteis enquanto se segue tranquilamente com o business as usual que hoje lamentavelmente marca, com estigma indelével, a maioria dos que são cúmplices de um dos piores genocídios já testemunhados por nossa geração. A mesma deplorável atitude de business as usual marca o crime contra as futuras gerações no que diz respeito à catástrofe climática que exacerba a cada dia. Inútil é a acusação de que o ativismo é inútil, a cidadania é inútil, a confrontação dos poderes é inútil; inútil é a tentativa de desqualificar quem luta pelo fim de todas as opressões ao invés de se resignar a ser a ovelinha no exército de conformados aos bullshit jobs que o capitalismo nos enfia goela abaixo.
Xingue-me de inútil o quanto quiser, soldadinho de chumbo dos negócios, mas no futuro estarei lá, andando com os camaradas, ajudando a compor as pernas e braços e cérebros e vozes de um novo Mandela coletivo que sabe e sente que nossa missão histórica ainda está tragicamente incompleta. Há um apartheid a desmantelar e um genocídio a parar. E não seremos parados por aqueles que nos xingam de inúteis enquanto sentados na bunda de seu obsceno credo “negócios são negócios”. Assim caminha a humanidade…
Texto, fotos e vídeos por
Eduardo Carli de Moraes
Holanda, Janeiro de 2024
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Leia os capítulos anteriores das Crônicas de Haia:
Publicado em: 28/01/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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